O Avanço Tardio da Transparência no Brasil [1]

October 20, 2016

Nos jornais ou nos palanques lá está ela sendo cobrada, ou prometida, palavra repetida como se recém-aprendida. Tão exaltada quanto popular, no Brasil a transparência é já tida como solução para muitos dos nossos problemas. Em 2011 foi aprovada a Lei de Acesso à Informação, que regulamenta a abertura dos órgãos públicos ao cidadão, e vimos o país liderar a Parceria para o Governo Aberto (OGP), uma iniciativa internacional que tem por objetivo principal justamente a promoção da transparência. Grandes avanços, sem dúvida, mas por que só agora?

Muitas nações aprovaram suas leis bem antes; os Estados Unidos, nosso parceiro na OGP, o fizeram em 1966. E vale lembrar que até pouco tempo havia no Brasil a possibilidade de governantes renovarem sucessivamente a classificação de documentos, mantendo informações em “sigilo eterno”. O apreço atual pela transparência contrasta com um histórico de muito maior valorização de seu oposto: o segredo.

Em 1834, pouco mais de uma década após a Independência, o “1º Regimento das Legações de Sua Majestade o Imperador do Brasil” já tratava de um dito “Livro Secreto B”, o qual conteria, dentre outras coisas, “quaisquer comunicações secretíssimas” e deveria ser guardado somente pelo Ministro de Estado dos Negócios Estrangeiros. Os tratados secretos também acompanham o país desde cedo. Um dos mais importantes foi firmado em 1º de maio de 1865, formando a Tríplice Aliança com Argentina e Uruguai contra o Paraguai.

A preocupação com o sigilo de fato já se fazia notar quando dos primeiros passos da política externa brasileira, e certamente é uma herança de Portugal, a antiga metrópole europeia, além de um imperativo do sistema internacional. O problema é que, por muito tempo, não houve preocupação equivalente com relação à transparência. O segredo foi preponderante e seu emprego pervertido pelos governantes, que constituíam armadilhas aos cidadãos em tempos de paz, na política interna, bem como faziam aos inimigos em tempos de guerra, parafraseando Baruch Spinoza. Ora, foi no recente ano de 2009, com o país vivendo o maior período democrático de sua história, que explodiu o escândalo dos atos secretos do Senado Federal – centenas de atos administrativos não publicados que concediam benefícios e privilégios a parlamentares e funcionários, acobertando improbidade e nepotismo.

Por definição, em democracias a publicidade dos atos públicos é a regra geral com a qual o sigilo deve contrastar na condição de exceção. A tendência do poder a se esconder, porém, parece irresistível, de modo geral, não só no Brasil, e de tal maneira que não se dá sem resistências. Esse avanço depende de uma sociedade civil ativa em sua defesa, implica em clara distinção entre os domínios público e privado e está fortemente relacionado com a consolidação do próprio regime democrático no país.

A demanda por transparência pressupõe um exercício de cidadania, enquanto consciência de direitos. Um súdito não demanda transparência de seu senhor. O indivíduo só passa a reivindicar a publicidade dos atos públicos quando se percebe como contraente do poder e não mais seu mero destinatário. Só que, no Brasil, nossas tendências patrimonialistas fizeram preponderar uma orientação para o Estado onipresente e “todo poderoso”, um vício a que José Murilo de Carvalho chamou de “estadania”. Por muito tempo e sem avanços significativos até o fim da República Velha, fora a abolição da escravidão em 1888, a cidadania no país esteve restrita às elites que preocupadas em não provocar rupturas da ordem social ou afrontar muito diretamente o poder estabelecido, se mostraram incapazes de demandar efetivamente a transparência da política.

O patrimonialismo também foi e é obstáculo para a transparência na medida em que se fundamenta em uma visão do Estado como propriedade do estamento, denotando uma distinção turva entre os domínios público e privado, que naturalmente afeta a forma como são tratadas as informações. No Antigo Regime, toda informação sobre a população, a administração e os recursos de um país era tida como propriedade do rei e, portanto, secreta. É impossível não pensar nessa herança quando lemos sobre gastos secretos com cartões corporativos de políticos e seus familiares, pagos pelos contribuintes, em torno do repasse de dinheiro a países como o Sudão, do condenado por genocídio Omar al Bashir.

De qualquer forma, o avanço da transparência no Brasil poderia ter se dado antes se não fossem as rupturas autoritárias que pontuam a história da República. A garantia de liberdades como as de expressão e imprensa é fundamental para que a esfera pública possa resistir à dominação baseada na “vontade” e exigir a racionalização da política por meio da transparência. E, de fato, no país, a repressão e a censura, bem como a cooptação, tiveram em momentos chave, como no pós-Independência, por exemplo, o êxito de sufocar o avanço de ideais liberais, como a transparência, que só agora consegue se afirmar.    

Resta atentar para que além de atrasado o avanço da transparência no Brasil também não degenere em discurso da moda, vazio e inócuo. O poder resiste à transparência, e uma de suas estratégias de resistência pode ser justamente transformar um princípio tão importante em mero chavão. 


[1] Ruan Sales de Paula Pinheiro, mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UNESP, Universidade Estadual Paulista.

About Author(s)

ruan.sales's picture
Ruan Sales de Paula Pinheiro
Ruan Sales is a graduate student in International Relations and Social Sciences at UNESP - São Paulo State University. He studies the changes in notions of secrecy and transparency in politics, comparing Brazil and United States in particular. His reflections on recent developments in the area have appeared in specialized websites and in the Brazilian press.