Brasil, Estados Unidos e as Relações entre seus Exércitos: da II Guerra Mundial à Guerra Fria

October 5, 2016

Depois de duas décadas de atuação de uma missão francesa no exército brasileiro, nos anos 1940 o Brasil empreendeu um segundo ciclo de modernização militar, agora junto aos Estados Unidos. Os laços estabelecidos entre os exércitos dos dois países atendiam às demandas de Washington de projetar a sua influência sobre todo o continente, erguendo um sistema defensivo primeiro contra o nazismo e o fascismo e, depois, contra o comunismo. Atendiam também às demandas brasileiras de armas e equipamentos modernos, de desenvolvimento de capacidades industriais e de supremacia regional, particularmente em face à Argentina.

A evolução dessa interação não foi linear. Para os Estados Unidos, o Brasil foi importante durante a II Guerra Mundial em função das bases militares construídas em território brasileiro – estratégicas para a defesa continental e a ligação com a África e Mediterrâneo – e de seu papel diplomático junto aos demais países da América do Sul. Para tanto, esteve disposto a atender às demandas brasileiras até que, no início da Guerra Fria, o Brasil fosse enquadrado como apenas mais um país do continente que deveria se adaptar ao dispositivo de defesa baseado no equilíbrio regional, e no combate ao comunismo. Já para os militares brasileiros, que viam nos laços com seus colegas estadunidenses uma via para a autonomia estratégica, tratava-se de negociar pragmática e seletivamente estas relações, cada vez mais politizadas internamente. Apesar da convergência em torno da agenda anticomunista e de o Exército Brasileiro ter-se aberto à influência organizacional, doutrinária e material dos EUA, houve resistências, adaptações e questionamentos desses laços.

Os Canais Institucionais e a II Guerra Mundial

Os laços entre os exércitos do Brasil e dos EUA foram cultivados a partir de canais institucionais específicos, que punham em contato direto as duas corporações. O primeiro deles foi o pequeno grupo de instrução na área de artilharia de costa, em 1934, que abriu espaço para o estabelecimento de um padrão de interação no qual se observa a longa presença daquele país no ensino militar brasileiro.  Ainda assim, na segunda metade da década de 1930, a influência estrangeira mais visível era alemã, decorrência do crescente comércio entre Brasil e Alemanha e da capacidade da indústria deste país fornecer o material bélico desejado pelos militares brasileiros. Nessa época a legislação dos EUA restringia vendas de armas ao exterior, o que limitava os esforços para construir uma aliança regional à diplomacia e visitas de autoridades militares. A deflagração da guerra e as mudanças na legislação dos Estados Unidos facilitaram a posição de negociação brasileira, que atuando de forma pendular, barganhava seus objetivos. As negociações foram longas, mas acabaram fazendo do Brasil, à época uma ditadura, um aliado diplomático e militar dos Estados Unidos contra as potências do Eixo, que em troca do apoio para a implantação de uma grande siderúrgica e da renovação de suas forças armadas, cedeu bases militares e direito de passagem às tropas norte-americanas.

Em 1942 os dois países assinaram o acordo militar que reforçou os laços entre ambos os exércitos. Foram criadas comissões especiais em Washington e no Rio de Janeiro que viabilizaram remessas de armamentos, preparo de técnicos brasileiros, operações de treinamento, envio de oficiais brasileiros para cursos nos EUA e tradução de manuais operacionais e extensa literatura técnica. Os laços se intensificaram ainda mais quando, vencidas resistências em ambos os países, foi criada a Força Expedicionária Brasileira (FEB), uma divisão de infantaria que atuou na Itália entre 1944 e 1945. A guerra trouxe forte interação entre as forças armadas do Brasil e dos Estados Unidos. Oficiais brasileiros viram instalações militares e cidades de uma grande potência, familiarizaram-se com armamentos modernos e suas táticas de emprego, e com o caráter industrial da guerra moderna. Com isso amadurecia a consciência do atraso brasileiro, que estava na raiz da clivagem ideológica do exército nas décadas seguintes: defensores da modernização aliada aos Estados Unidos e defensores da modernização pela via nacionalista. As atitudes dos oficiais brasileiros quanto aos EUA foram variadas, havendo desde entusiastas do modelo militar americano quanto céticos que ali viam apenas uma variante do modelo francês. Por outro lado, a dimensão política da FEB acabou limitando seu impacto organizacional. Temendo que Vargas explorasse o êxito dos veteranos em favor de sua popularidade, a cúpula militar ordenou a rápida desmobilização da FEB, além de proibir a formação de associações de ex-combatentes.

O Pós-Guerra e a Guerra Fria

Na primeira década que se seguiu à guerra um dos pilares da interação entre os dois exércitos foi a convergência em torno da agenda anticomunista, prioridade da cúpula militar brasileira. O outro pilar residia na expectativa de que as massivas transferências de armamentos ocorridas durante a II Guerra Mundial continuassem. A desilusão neste aspecto não foi pequena, planos ambiciosos foram frustrados e a própria comissão encarregada de coordenar a interação entre os dois exércitos esteve a ponto de ser fechada. Para os EUA o Brasil perdera relevância estratégica e, desde então, as modestas transferências de armamentos se dariam a partir do princípio do equilíbrio e padronização das forças armadas da América Latina e da baixa prioridade da região, ao menos até a revolução cubana.

Ainda assim, a interação entre os exércitos dos dois países não foi pequena. Militares estadunidenses participaram ativamente assessorando o processo de planejamento e reforma do Exército brasileiro, especialmente no setor de ensino e na estrutura do Estado-Maior, assim como na criação da Escola Superior de Guerra. Sua presença era comum em manobras e exercícios e os canais estabelecidos eram fundamentais para garantir a reposição de peças dos equipamentos transferidos nos anos anteriores. A incorporação de material bélico, doutrinas e assessores sugere que estava em curso um processo de americanização do Exército brasileiro. Havia, contudo, limites organizacionais, estratégicos e políticos a uma eventual réplica em escala menor da estrutura militar estadunidense. A herança da não muito distante interação com os militares franceses alimentava certo ceticismo em relação aos Estados Unidos, o que se somava ao custo operacional e de manutenção dos cada vez mais limitados e obsoletos armamentos proveniente dos EUA. Por seu turno, as restrições à transferência de armamentos de maior tecnologia alimentou descontentamento, a busca por outros fornecedores e a disposição para desenvolver uma indústria bélica própria, que iria florescer nas décadas seguintes.

O Brasil ainda era um país em processo de urbanização e que dava seus primeiros passos rumo à industrialização e a graus maiores de autonomia. A relação com os Estados Unidos funcionava como um divisor de águas ideológico em torno do modelo de desenvolvimento do país e a linha de fratura percorria o corpo de oficiais e de praças das Forças Armadas brasileiras. De um lado, estavam os defensores das relações estreitas com os Estados Unidos em setores estratégicos como petróleo, tecnologia nuclear, investimentos privados e cooperação militar; de outro, os defensores da via nacionalista para o desenvolvimento de capacidades nestes setores. As eleições para a direção do Clube Militar e os debates parlamentares em torno da exploração do petróleo, da pesquisa nuclear e da assinatura do novo acordo militar de 1952 polarizavam as posições que se radicalizavam naquele ambiente de Guerra Fria. Essa polarização e a incerteza quanto a eventuais ganhos econômicos e em novas capacidades militares acabaram fazendo com que o Brasil não atendesse a demanda dos EUA de enviar tropas para o conflito na Coréia.

Considerações Finais

As relações militares entre os exércitos do Brasil e dos Estados Unidos foram marcadas pela coincidência apenas parcial de objetivos, o que envolveu negociações e tensões ao longo do período. Os canais estabelecidos possibilitaram uma forte interação e revelam o quanto o Exército Brasileiro abriu-se à presença de consultores e instrutores estadunidenses em suas escolas e unidades. Houve também resistências de oficiais brasileiros ainda influenciados pela França ou que se opunham à dependência e à agenda anticomunista partilhada por Washington e pela cúpula militar brasileira. O novo ciclo de modernização do exército brasileiro que a interação com o dos Estados Unidos trouxe não diminuiu as disposições para o protagonismo na política interna em nome da industrialização e modernização do país e, especialmente, do combate ao comunismo.

About Author(s)

Eduardo Svartman
Eduardo Munhoz Svartman, PhD is professor at the Department of Political Science at Federal University of Rio Grande do Sul, Brazil. He was executive editor of the Brazilian Defense Studies Review and visiting professor at Universidad Nacional de Rosário, Argentina. As member of the Brazilian Political Science Association, Brazilian Defense Studies Association and Latin American Political Science Association his main research interest includes armed forces, national defense policies, international security and Brazil-United States military relations.