A Crise Política no Brasil

November 30, 2016

De uma forma bastante resumida podemos dizer que a crise política do Brasil teve início com as manifestações de junho de 2013  e culmina com a deposição da Presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016.

Em relação ao impeachment, não é a primeira vez na história da democracia brasileira que passamos por um processo dessa natureza. Esse tipo de intervenção está previsto na nossa Constituição e, por si só, não representa uma interrupção institucional na nossa democracia.

Mas ao contrário do que ocorreu no impeachment  do ex-presidente Collor de 1992 - que de certa forma uniu o país na defesa da democracia -  o impeachment de 2016 provoca o aprofundamento das divisões internas, já expressas nos resultados das eleições presidenciais de 2015.  

Assim, parte da sociedade considera que houve um golpe de Estado. Para a outra parte, houve um processo de impeachment de acordo com as regras constitucionais vigentes.

Aqueles que consideram que não foi um golpe, tem convicção de que o país estava imerso em uma grande crise econômica em função do esquema de corrupção liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Consideram também que, ao maquiar as contas da União – as famosas “pedaladas fiscais” -  a Presidenta Dilma estaria cometendo um crime de responsabilidade fiscal merecendo assim ser deposta.

Por outro lado, aqueles que consideram que o Brasil passou por um golpe de Estado, tem convicção de que a constituição foi rasgada e o impeachment da Presidenta Dilma sem comprovação de crime, foi golpe.

Argumentam que as mesmas “pedaladas fiscais” (maquillagens fiscais) cometidas por Dilma foram igualmente utilizadas por 17 dos 27 atuais governadores que usaram o mesmo artifício para fechar as contas em seus respectivos estados. Dentre eles – apenas para destacar os estados politicamente mais relevantes da federação – os governadores de S. Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Distrito Federal.

Argumentam também que esse mesmo ato foi cometido pelos presidentes que antecederam Dilma Rousseff: Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e a própria Dilma Rousseff em sem primeiro mandato, sem que essa ação fosse considerada crime de responsabilidade fiscal.

Portanto, a partir dessa visão, houve um golpe liderado pelo parlamento, parte do poder judiciário, com o suporte da mídia hegemônica comanda pela Rede Globo.

Enfim: essas notas iniciais são apenas para contextualizar o nosso debate sobre a crise politica no Brasil tendo como foco de análise a validade ou a vulnerabilidade das instituições políticas concebidas pela Constituição em 1988.

Com esse objetivo, a nossa análise focaliza dois aspectos considerados importantes – mesmo que não sejam os únicos – na compreensão da atual crise política do Brasil. São eles: a questão da fragmentação partidária do sistema político e o papel do judiciário e Ministério Público na atual crise política.

 

Fragmentação partidária

Como todos nos sabemos, o sistema político brasileiro é denominado “Presidencialismo de Coalisão”.

A expressão “Presidencialismo de Coalizão” foi cunhada, há 25 anos, pelo cientista político Sérgio Abranches, em um artigo intitulado “Presidencialismo de Coalisão: o dilema institucional Brasileiro”, que posteriormente tornou-se um clássico da ciência política brasileira.

Nessa época já era influente no meio acadêmico brasileiro o famoso ensaio do cientista político Juan J. Linz intitulado "Democracy: presidential or parliamentary. Does it make a difference?", escrito em 1985. A principal tese do ensaio era de que o presidencialismo teria menor probabilidade de sustentar regimes democráticos estáveis do que o parlamentarismo.

Segundo o autor, o presidencialismo não favoreceria aos governos de coalisões por ser muito rígido e por não possuir mecanismos institucionais para resolução de crises entre os poderes, não sendo, portanto, propício à cooperação política.

No caso brasileiro, o “Presidencialismo de Coalisão”, designa a prática de um país presidencialista em que a fragmentação do poder parlamentar entre vários partidos obriga o Executivo   a formar uma base parlamentar profundamente heterogênea e problemática.

Para governar, o executivo precisa construir uma ampla maioria, frequentemente contraditória em relação ao programa do partido no poder e difusa do ponto de vista ideológico. Essas contradições causadas por esse tipo de aliança, Abranches apresenta como sendo o “dilema institucional brasileiro”.

 Dez anos (1998) depois Fernando Limonge e Argelina Figueiredo publicam uma pesquisa intitulada “As bases institucionais do Presidencialismo de Coalisão” cujos resultados parecem enfraquecer a tese de Abranches.

Após analisar a agenda legislativa dos quatro presidentes que governaram sob a vigência da nova Constituição de 1988, (Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique) os pesquisadores concluíram que não subsistem os argumentos usualmente apresentados que questionam os governos do presidencialismo brasileiro.

Os dados analisados pelos autores demonstraram que as coalizões partidárias obtiveram grande sucesso na sua relação com a base aliada e, mesmo nas condições mais difíceis - como a votação de matérias constitucionais - os presidentes puderam contar com o apoio de sua coalizão.

Os resultados dessa pesquisa teve grande repercussão e estimularam inúmeros outros trabalhos no Brasil de autores como Otávio Amorim Neto, Carlos Pereira e Bernardo Muller, Fabiano dos Santos, dentre outros.

Na conjuntura atual, a pergunta que elaboramos é se o impeachment da Presidenta Dilma significa uma ruptura com o modelo de Presidencialismo de Coalisão, isto é, uma ruptura com a base que alicerça todo sistema politico da chamada Nova República.

Não temos ainda um afastamento histórico que nos permita mapear todas variáveis desse processo.

Entretanto, seguindo as pistas deixadas por Abranches sobre o paradoxo do nosso modelo, e observando dados provenientes da Câmara dos Deputados, podemos ter uma ideia mais geral, do atual estágio de fragmentação partidária no Brasil .

 

Partidos com representação partidária na Câmara dos Deputados por Legislatura

Ano                                         Total de Partidos

1990                                         19

1994                                         15

1998                                         15

2002                                         16

2006                                         21

2010                                         19

2014                                         28

Fonte: Câmara dos Deputados e Tribunal Superior Eleitoral

Vale refletir sobre alguns desses pontos. Desde que o Brasil voltou a ter eleições diretas para a Presidência da República, em 1989, o número de partidos representados na Câmara dos Deputados, sempre foi superior a 15 legendas, chegando ao recorde de 28 agremiações em 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita.

Hoje a fragmentação partidária gera uma enorme dificuldade ou mesmo impossibilidade na construção de maiorias. Nesse sentido é que podemos afirmar que o impeachment da Presidenta Dilma é também o resultado de uma relação deteriorada entre o Executivo e o Legislativo que dificultou ou mesmo impediu a aprovação de medidas econômicas capazes de contornar a crise.

 

Poder Judiciário

O segundo aspecto importante na análise da crise atual que eu gostaria ainda de brevemente analisar seria o poder judiciário e ministério público enfatizando, especificamente, suas respectivas atuações no caso que ficou conhecido como “operação lava jato”.

Antes uma breve contextualização histórica a fim de possamos melhor entender o papel dessas duas Instituições no cenário político brasileiro.

A constituição de 1988, conferiu ao poder judiciário um grau de autonomia permitindo a esse poder um protagonismo político independente da ação do executivo ou mesmo da maioria parlamentar.

O mesmo ocorreu como o Ministério Público Federal que passa atuar na defesa da ordem jurídica, do regime democrático podendo inclusive fiscalizar políticos e agentes públicos funcionando como uma importante instituição de inspeção e vigilância em prol da cidadania da chamada Nova República.

Assim, ao aumentar suas prerrogativas no texto constitucional de 1988, o poder judiciário passa a ter uma grande centralidade na atual crise política forjando elementos de legitimação de um poder contra majoritário em detrimento da soberania popular.

 A nossa argumentação é que esse modelo ancorado em uma total autonomia, isento de controles externos, mostrou-se problemático  durante a famosa “operação lava jato”.

A “Operação Lava Jato” é seguramente a maior investigação sobre corrupção conduzida até hoje no Brasil.

Ela começou investigando uma rede de doleiros que atuavam em vários Estados e descobriu a existência de um vasto esquema de corrupção na empresa estatal Petrobras, envolvendo políticos de vários partidos, funcionários públicos e grandes empresários.

É preciso reconhecer que na primeira fase da “operação lava jato”, houve um avanço expressivo no combate a corrupção sistêmica da empresa estatal. Diretores da Petrobrás e Presidentes de grandes empresas foram  presos sinalizando aos brasileiros que “ninguém estava acima da lei”.

Durante todo esse período, cujo início se deu em março de 2014, a “operação lava jato” teve excepcional destaque na mídia local, tendo como centro de divulgação  as qualidades pessoais do juiz Sérgio Moro e de sua determinação em “exterminar” a corrupção no país.

Em função da sua notoriedade e pelo fato da operação lava jato estar atingindo sobretudo o Partido dos Trabalhadores, o juiz Moro passa a ser assediado também pelos principais representantes da oposição.

Assim, o juiz tira fotos com o candidato hoje prefeito eleito de S. Paulo  João Dória (18 de março 2016) ao mesmo tempo que recebe prêmio de “Personalidade do Ano” da rede de notícias "O Globo", uma homenagem a seu trabalho na “Operação Lava-Jato”.

Para uma boa parte de juristas, professores, intelectuais, o juiz Moro, em função da responsabilidade do cargo que ocupa, deveria ter recusado o prêmio da mais poderosa rede de televisão do país: Para o jurista Pedro Serrano, “Numa democracia consolidada, mídia e justiça não podem festejar e confraternizar juntos como velhos camaradas”.

Essas críticas foram potencializadas pelas redes sociais sobretudo quando Moro confessou, durante a cerimônia de entrega do referido prêmio, ter ficado “particularmente tocado” com as recentes manifestações de rua a favor da operação lava jato.

O juiz se referia aos protestos que ocorreram em março de 2016 no qual Dilma e o Partido dos Trabalhadores foram massacrados e que ele, Sérgio Moro foi homenageado com frases, camisetas e cartazes com “somos todos Juiz Moro”, “Moro me representa”, “Moro para presidente” ou “eu confio na operação lava jato”.

O vídeo mostra o juiz agradecendo “a bondade do povo brasileiro” e, numa curiosa junção entre o campo jurídico e a opinião pública, Moro declara: “Com o apoio das instituições democráticas e da sociedade, acredito que vamos conseguir superar esses problemas com tranquilidade".

Dando prosseguimento a sua entrada no mundo “pop-star”, o juiz federal Sérgio Moro aparece na 13ª colocação do ranking de "maiores líderes do mundo", (elaborado pela revista norte-americana "Fortune") sendo também homenageado pela prestigiada revista americana ‘Time’, que o elegeu entre as cem personalidades ‘mais influentes do mundo”.

Esse clima de exaltação nacional contra a corrupção encarnado pela combatividade do juiz Sérgio Moro coincide com a campanha eleitoral de 2014 sendo progressivamente reforçado pelos reincidentes ataques ao sistema político com o apoio dos meios hegemônicos de comunicação.

De fato, durante a campanha eleitoral de 2014 a “operação lava jato” dá início a um perigoso processo de politização que se inicia com a publicação ilegal, de depoimentos de empresários, políticos, investigados pela justiça que incriminam, de forma seletiva, o Partido dos Trabalhadores. Isso ocorreu uma semana antes das eleições presidenciais. Em protesto, a Ordem dos Advogados do Brasil lembrou que “Processo penal não é política: apenas em regimes totalitários as duas esferas se confundem”.

Após as eleições, com a vitória apertada da ex-Presidenta Dilma pelo Partido dos Trabalhadores, deu-se a detenção do ex-Presidente Lula que seria levado de forma coercitiva para Curitiba (dia 4 de março) para ser interrogado pelo Juiz Moro.

A primeira crítica contundente à ação do juiz Moro veio do Ministro Marco Aurélio de Mello, membro da Corte Suprema Brasileira (Supremo Tribunal Federal). Para o Ministro, segundo a nossa Constituição, “Só se conduz coercitivamente, quando o cidadão recusa a convocação judicial e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado”, afirmou o Ministro.

Na sequencia, no dia 16 de março, a presidenta Dilma Rousseff, ainda em exercício de seu mandato, foi vítima de escuta telefônica feita pelo Juiz de primeira instancia Sérgio Moro. Após ter autorizado, de forma ilegal, a gravação de um diálogo entre a então Presidenta da República e o Ex-Presidente Lula, o juiz Sérgio Moro entrega a gravação para os jornalistas da rede globo de Televisão.

O diálogo, transmitido para todo o país, se referia ao documento de nomeação de Lula como Ministro Chefe da casa Civil da Presidenta Dilma. A divulgação ilegal desse diálogo resultou na suspensão da nomeação de Lula para o exercício do referido cargo.

Um terceiro evento, que provocou grande discussão sobre o “modus operandi” da “operação lava jato” foi a recente denúncia contra o Ex-Presidente Lula por parte dos integrantes do Ministério Público.

Os procuradores responsáveis pelas investigações da “operação lava jato” convocaram a imprensa para, em cadeia nacional, denunciar o Ex-Presidente Lula por corrupção passiva, lavagem de dinheiro, relacionada à suposta posse, não comprovada, de um sitio e de apartamento localizados em S. Paulo.

Em sua exposição, o coordenador da operação – Procurador Deltan Dallagnol – acusou Lula de ser o “comandante máximo”, “maestro regente” ou “general” de uma “propinocracia” [1] montada para saquear a empresa estatal Petrobrás. Fez ainda uma grave acusação: “Lula é o maestro dessa grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos”.

Apesar das acusações gravíssimas feitas de forma espetacularizadas, transmitidas por todos canais de televisão, a acusação formal não levou em consideração o fundamento essencial garantidor da abertura de qualquer processo jurídico: a apresentação de provas.

Na sua narrativa, um dos procuradores - Roberson Henrique Pozzobom – chegou a afirmar que “a denúncia que irá fazer não conta com provas cabais, mas sabemos que é verdade”.

De grande repercussão, esse evento foi comentado igualmente pelo Ministro relator do processo da operação lava jato junto ao Supremo Tribunal Federal (Corte Suprema). Para o Ministro Teori Zavascki, "o episódio não é compatível nem com o que consta nos autos, nem com a seriedade que se exige na apuração desses fatos".

De fato, a tentativa de reduzir a impunidade no Brasil está em vários casos  sendo confundida com o fortalecimento não do estado de direito e sim de juízes e agentes do Ministério Público que agem arbitrariamente desrespeitando, muitas vezes, as prerrogativas constitucionais durante o processo investigativo.

 

Conclusões

A título de conclusão podemos dizer que parte da crise que conduziu a deposição da Presidenta Dilma Rousseff pode ser explicada através da análise do esgotamento do atual modelo do Presidencialismo de Coalizão.

Além desse aspecto, a gravidade da crise política exige uma análise detalhada da aliança que se estabeleceu entre o Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal. Ao trabalharem em perfeita sintonia, perde-se o preceito constitucional da separação entre aquele que julga, aquele que acusa e aquele que investiga.

Nestas condições, onde a Corte Suprema fica omissa diante da ação de um juiz de primeira instância e  dos sucessivos vazamento de informações processuais por parte da Procuradoria Geral da República, o processo de legitimação do regime democrático migra, de forma preocupante, para o poder judiciário.

Sendo um poder contra majoritário, ao se transformar em uma suposta “vontade geral”, o judiciário fica exposto a uma crescente politização e vulnerabilidade da soberania política.

Podemos dizer, de forma bastante simplificada, que o quadro geral do sistema político está assim colocado: um executivo com baixa legitimidade, um legislativo refém das empresas financiadoras de campanha e um judiciário que migra progressivamente para o campo político ameaçando a legitimidade de uma democracia de baixíssima densidade.

O que estamos assistindo não é somente mais uma crise de governo e sim uma crise importante no conjunto do sistema político brasileiro.

Não sabemos ainda se diante do quadro atual podemos sentenciar o fim da chamada Nova República: uma coalisão entre setores do centro e da esquerda que permitiu o desenvolvimento de um importante processo de inclusão social que se estendeu até 2014. O ajuste fiscal do atual projeto governamental representa uma redução drástica nos principais programas sociais e nas conquistas obtidas pela Constituição de 1988.  

Se esse for realmente o projeto vencedor no enfrentamento da crise, só consigo vislumbrar dois cenários: no primeiro cenário, fica evidente o retrocesso em termos de compromisso com uma agenda social alicerçada na conquista de direitos e ampliação da cidadania.

Numa segunda perspectiva, mais otimista, a sociedade brasileira terá condições de reunir uma frente ampla de resistência capaz de assegurar o legado político e social da Nova República.


Nota:

1 A “propinocracia”(governo do suborno) é uma alusão a “Tangentopoli”(cidade do suborno) termo utilizado pela operação “Mãos Limpas” ao esquema de corrupção na Itália em 1992. 

 

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Marilde Loiola de Menezes
Doutora em Sociologia - École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França. Professora Associada do Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília. Área de interesse: Teoria Política, atuando nos seguintes temas: Democracia e Cidadania, Poder Judiciário.