A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Dentre as vítimas de morte em decorrência de violência policial no Brasil, cerca de 70 % são jovens negros. As raízes do racismo no Brasil repousam em uma longa história de violência colonial que consolidou as estruturas fundacionais do Estado-nação. No artigo “Anjo Negro: as fundações racistas do Estado no Brasil”, buscamos, inspirados pelas ideias de Frantz Fanon, refletir sobre o racismo estrutural que, desde os tempos coloniais, vem forjando a sociedade brasileira. A peça “Anjo Negro” escrita por Nelson Rodrigues em 1946 é entendida no artigo como uma metáfora do Brasil e do tratamento violento historicamente conferido à diferença racial. Centrada num casamento inter-racial entre a branca Virgínia e o negro Ismael, a peça pode ser entendida como uma denúncia do imaginário nacional da “democracia racial” associado ao pensamento de Gilberto Freyre. Contra o mito da harmonia racial brasileira, Virgínia afoga todos os filhos pretos gerados pelo casal no tanque de sua casa.
À imagem das tensões e violências que se desenrolam no núcleo familiar da peça, o Estado brasileiro se (re)produz por meio de um processo abortivo no qual os negros, lidos a partir da ideia de filhos ilegítimos da nação, são mortos precocemente e diariamente. O Estado-nação brasileiro se sustenta às custas do sangue negro que escorre nessas terras há quinhentos anos. Assim como os filhos negros gerados pela relação abusiva entre Ismael e Virgínia são mortos um a um, os filhos negros gerados pela relação de violência colonial no Brasil são também historicamente expostos à morte, física e social. De fato, na história do Brasil pós-colonial, os homens negros passaram a ser alvos tanto de violência simbólica como física, como no caso do infanticídio levado a cabo por Virgínia, já que entendidos como o principal entrave para o projeto de embranquecimento do Estado-nação ambicionado pelas nossas elites.
A peça, nesse sentido, interpela o público a questionar a concepção harmoniosa e bem resolvida de Estado-nação expressa no mito da “democracia racial” e expõe o privilégio branco que, embora não nomeado, habita o íntimo da sociedade brasileira. Tal privilégio explica o fato de Nelson Rodrigues ter sido obrigado a substituir, na estreia da peça, o ator negro, Abdias do Nascimento, por Orlando Guy, um ator branco pintado de preto, para interpretar o personagem de Ismael. De fato, a única ressalva feita pela Comissão do Teatro Municipal no momento da primeira tentativa de montar a peça naquele espaço em 1948 foi que Ismael, com esse nome bíblico, fosse interpretado por um ator branco, conforme colocado por Ruy Castro, biógrafo de Nelson Rodrigues. Nesse sentido, a peça reflete a vida diária ao expor de forma contundente as fraturas raciais da sociedade brasileira e seus efeitos psicológicos sobre os corpos negros, tão bem explorados por Fanon, anos mais tarde (1952), em “Pele Negra, Máscara Branca”.
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LARR Article:
Fernández, M., & Santiago, V. (2019). Anjo negro: As fundações racistas do Estado no Brasil. Latin American Research Review, 54(1), 121–134. DOI: http://doi.org/10.25222/larr.267