Anjo negro: As fundações racistas do Estado no Brasil

May 17, 2019

A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Dentre as vítimas de morte em decorrência de violência policial no Brasil, cerca de 70 % são jovens negros. As raízes do racismo no Brasil repousam em uma longa história de violência colonial que consolidou as estruturas fundacionais do Estado-nação. No artigo “Anjo Negro: as fundações racistas do Estado no Brasil”, buscamos, inspirados pelas ideias de Frantz Fanon, refletir sobre o racismo estrutural que, desde os tempos coloniais, vem forjando a sociedade brasileira. A peça “Anjo Negro” escrita por Nelson Rodrigues em 1946 é entendida no artigo como uma metáfora do Brasil e do tratamento violento historicamente conferido à diferença racial. Centrada num casamento inter-racial entre a branca Virgínia e o negro Ismael, a peça pode ser entendida como uma denúncia do imaginário nacional da “democracia racial” associado ao pensamento de Gilberto Freyre. Contra o mito da harmonia racial brasileira, Virgínia afoga todos os filhos pretos gerados pelo casal no tanque de sua casa.

À imagem das tensões e violências que se desenrolam no núcleo familiar da peça, o Estado brasileiro se (re)produz por meio de um processo abortivo no qual os negros, lidos a partir da ideia de filhos ilegítimos da nação, são mortos precocemente  e diariamente. O Estado-nação brasileiro se sustenta às custas do sangue negro que escorre nessas terras há quinhentos anos. Assim como os filhos negros gerados pela relação abusiva entre Ismael e Virgínia são mortos um a um, os filhos negros gerados pela relação de violência colonial no Brasil são também historicamente expostos à morte, física e social. De fato, na história do Brasil pós-colonial, os homens negros passaram a ser alvos tanto de violência simbólica como física, como no caso do infanticídio levado a cabo por Virgínia, já que entendidos como o principal entrave para o projeto de embranquecimento do Estado-nação ambicionado pelas nossas elites. 

A peça, nesse sentido, interpela o público a questionar a concepção harmoniosa e bem resolvida de Estado-nação expressa no mito da “democracia racial” e expõe o privilégio branco que, embora não nomeado, habita o íntimo da sociedade brasileira. Tal privilégio explica o fato de Nelson Rodrigues ter sido obrigado a substituir, na estreia da peça, o ator negro, Abdias do Nascimento, por Orlando Guy, um ator branco pintado de preto, para interpretar o personagem de Ismael. De fato, a única ressalva feita pela Comissão do Teatro Municipal no momento da primeira tentativa de montar a peça naquele espaço em 1948 foi que Ismael, com esse nome bíblico, fosse interpretado por um ator branco, conforme colocado por Ruy Castro, biógrafo de Nelson Rodrigues. Nesse sentido, a peça reflete a vida diária ao expor de forma contundente as fraturas raciais da sociedade brasileira e seus efeitos psicológicos sobre os corpos negros, tão bem explorados por Fanon, anos mais tarde (1952), em “Pele Negra, Máscara Branca”.

Picture: WikiCommons

LARR Article: 

Fernández, M., & Santiago, V. (2019). Anjo negro: As fundações racistas do Estado no Brasil. Latin American Research Review, 54(1), 121–134. DOI: http://doi.org/10.25222/larr.267

 

About Author(s)

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Marta Fernandez
Marta Fernández é professora e diretora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, onde concluiu seu doutorado. Suas principais áreas de interesse e publicações se concentram em estudos pós-coloniais e decoloniais, racismo, estética, operações de paz e desenvolvimento.
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Vinícius Santiago
Is Ph.D. candidate in International Relations at the Institute of International Relations, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brazil. In the Master Program at the same Institute he developed a research project about the state violence in favelas of Rio and the mobilization of mothers in the struggle for justice after the killing of their sons. During the past few years he has been engaged in a fieldwork following the mothers in order to understand their relation with the state within such a background. His research interests include postcolonial studies, post-structuralism, aesthetics, gender and racism, anthropology, political philosophy. E-mail: viniciuswbsantiago@gmail.com.